O Desprezo (Le Mépris, 1963)

O Desprezo (Le Mépris, 1963)
França/Itália, 1963, 35mm, 102 min
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro adaptado do livro “Il Disprezzo”, de Alberto Moravia
Elenco: Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Jack Palance, Giorgia Moll e Fritz Lang

Sinopse

Paul (Picoli) está para ser contratado por Jerry Prokosh (Palance), produtor norte-americano, para reescrever “A Odisséia”, produção em pleno processo de filmagem e que tem como diretor o alemão Fritz Lang (vivido por ele mesmo). Paul utiliza sua bela esposa Camille (Brigit Bardot) para agradar Prokosh, algo que a magoa profundamente. Aos poucos, assistimos a produção avançar e o casamento de Paul e Camille se desintegrar.

A arte versus o comércio

Quase tudo que precisamos descobrir em “O Desprezo” está em seus primeiros 15 minutos. O produtor ganancioso sente-se enganado por um diretor que busca reinventar “A Odisséia”, clássico grego. O primeiro busca dinheiro, o segundo a arte. É o velho conflito, que desde sempre permeou a criação, mas que ganhou novas dimensões com o cinema.

Entra em cena um novo roteirista, que é simpático ao diretor, mas que opta pelo lado mais forte e oferece a companhia da própria mulher ao produtor a fim de ser contratado para essa super produção. A mesma companheira a quem a pouco ele havia declarado paixão desmedida, num belo plano-seqüência em que Brigite Bardot aparece nua. Suaves movimentos nos levam a conhecer aquele jovem corpo, enquanto ela questiona o quanto é amada por seu companheiro.

Assim, assistiremos, durante toda a projeção, o embate entre arte versus comércio e um casal jovem a se maltratar. Veremos de forma suave, tais quais os travellings e pans que nos conduzem durante quase todo filme, a contradição do mundo das artes e o mais puro dos sonhos se desintegrando gradativamente.

Há uma doçura nesse conflito, não apenas corporificado pela beleza de Bardot, mas pela paleta de cores e luz que é farta. Do início ao final, do apartamento em Roma a Capri.

Importante dizer, ainda, que “O Desprezo” se volta para si mesmo e para o cinema, desde o travelling inicial. Um filme que reflete suas próprias contradições e marca uma experiência única na carreira de Jean-Luc Godard.

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Diretor versus produtor

Entre 1959 e 1967, Godard realizou nada menos que 15 filmes. “O Desprezo” foi o sexto nessa seqüência. O diretor franco-suíço aparecia como uma grande aposta dos produtores Joseph Leline e Carlo Ponti, que se encarregaram de contratar a maior estrela do cinema naquele momento para o papel principal da película: Brigite Bardot, que apareceu para o mundo em “E Deus Criou a Mulher”, de Roger Vadim (1957).

Não se tratava da primeira opção do diretor, mas ele teve que aceitar a decisão dos produtores. Esse não foi o único desgaste entre direção e produção, muito pelo contrario. A lista é vasta e conta-se que até mesmo o formato CinemaScope foi imposto, dado que se tratava de uma relativa novidade da indústria. Em determinado momento de “O Desprezo”, o diretor Fritz Lang, alter ego de Godard, diz que “scope é bom para filmar cobras e caixões, não o ser humano”. Godard não deixava barato.

Antológica, ainda, a cena em que o Prokosh assiste às imagens feitas por Lang repletas de simbolismos e decreta “Você me enganou!”. Levine e Conti também se sentiam ludibriados e exigiram que Godard filmasse Bardot nua. Levine teria dito que “seria a única forma de vender esse filme que eu odeio”. Foi assim que surgiu a bela seqüencia já citada, onde uma das mais sensuais estrelas do cinema foi filmada de forma frágil e quase que desprovida de erotismo.

A verdade é que Godard se mostrava interessado em trabalhar numa grande produção, mas não nutria nenhuma admiração pelo livro de Alberto Moravia, “Il Disprezzo”, obra que ele considerava vulgar e que deveria ser lida numa única viagem de trem.

“O Desprezo” representa o maior orçamento que Godard lidou em toda a sua vida. Foi uma experiência grande e única, que contou com dinheiro dos Estados Unidos.

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Fritz Lang

Mestre do expressionismo alemão, conta-se que o realizador de “Metropolis” (1927) se recusou a filmar encomenda feita pelo Ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. Em seguida, Lang foi viver nos Estados Unidos, onde realizou filmes que não tiveram o mesmo acolhimento que as obras anteriores.

Em “O Desprezo”, a história da recusa de Lang em realizar a propaganda nazista vem à tona. Mas, aqui, Lang não tem mais forças para se recusar a realizar o que o produtor deseja. O dinheiro é mais forte que a ideologia, que a política.

Há uma grande ironia nessa situação, ainda mais quando lembramos que Fritz Lang já tinha 73 anos e já estava há alguns anos sem filmar. Conta-se que a cegueira que o tomava era a razão principal dele não mais dirigir filmes. Outros, que o mundo do cinema já havia lhe dado as costas e um dos mais notáveis cineastas não conseguia recursos para realizar novas produções.

Por Cláudio Marques