Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West, 1968)
Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West, 1968)
Cor, 165 minutos, DCP
Direção: Sergio Leone
Roteiro: Sergio Leone e Sergio Donati
Elenco: Henry Fonda, Charles Bronson, Claudia Cardinale
Sinopse
Com suas terras prestes a se tornar rota de estrada de ferro, um pai e todos os seus filhos são brutalmente assassinados por um matador profissional. O que ninguém sabia é que ele havia se casado com uma prostituta de Nova Orleans, que passa a ser a dona do local e recebe a proteção de um atirador que tem suas próprias contas para acertar com o matador.
A antropofagia do western
“Era uma vez no Oeste” (Once Upon a Time in the West, 1968) é o mais belo gesto antropofágico do western spaghetti. Sergio Leone, o realizador, estava habituado aos filmes de gênero. Iniciou sua carreira nos peplum (os épicos italianos conhecidos como “sandália e espada”) até filmar, sob pseudônimo norte-americano, “Por um punhado de dólares”. Era uma época de crise da indústria cinematográfica, nos EUA e na Europa.
O avanço da televisão, mas, sobretudo, a desilusão com o cinema, que demorou a apresentar imagens dos campos de concentração na Segunda Grande Guerra Mundial, teve um impacto geracional e econômico decisivo nos rumos da produção nas décadas de 1950 e 1960. A Itália, num primeiro momento, foi beneficiada com a ocupação dos EUA no pós-guerra. O estúdios mediterrâneos, como a Cinecittà, abrigaram as filmagens de produções tão distintas quanto “Ben-Hur” e “A Princesa e o Plebeu” em razão dos baixos custos de locação. Mas logo os filmes em grande escala, mesmo em Hollywood, iriam ceder lugar às fitas de orçamento reduzido. O faroeste à italiana era um meio de sobrevivência.

Neste contexto, “Era uma vez no Oeste” é também o ápice de uma fórmula francamente comercial, mas que ultrapassa sua intenção meramente mercantil. É o contraponto do álibi autorista, do filme engajado ou independente que já naquela época começava a outorgar uma qualidade a priori e não que se provava na realização, na tela.
Ao se apropriar da narrativa de fundação por excelência do cinema norte-americano, o western, Leone reconfigura um gênero já em decadência nos EUA, atribuindo-lhe não apenas um lastro europeu (em voga naqueles tempos), como, sobretudo, uma liberdade formal capaz de transgredir, no seio do classicismo, os códigos e clichês consagrados por Hollywood. Os super closes, a extensão temporal dos planos e o tom operístico da mise-en-scène ilustram essa sutil revolução conjurada para as grandes massas.
Leone estava na contramão e incólume aos modismos. Daí resulta grande parte da perenidade assombrosa de “Era uma vez no Oeste”. Um filme pessoal e visceralmente italiano, nem por isso menos norte-americano ou espetacular. Ao unir o aparentemente inconciliável (o regime de produção industrial e a força autoral, a política e o entretenimento, o clichê e a invenção), Leone comprova a assertiva godardiana de que aquilo que nenhuma outra arte consegue amalgamar, o cinema consegue.
Obra-prima calcada na consolidação das fronteiras, “Era uma vez no Oeste” é, sobretudo, um filme sobre a desterritorialização implícita no cinema dito popular. Tal como uma memória coletiva que partilhamos religiosamente, não importa a parte do mundo em que nos sentamos numa sala escura, essa é uma narrativa de todos nós.
Por Adolfo Gomes