Zero de Conduta (Zéro de conduite: Jeunes diables au collège, 1933)
Preto e Branco, 41 minutos, 35mm
Direção: Jean Vigo
Roteiro: Jean Vigo
Elenco: Jean Dasté, Robert Le Flon, Louis Lefebvre
Sinopse
Numa escola francesa, alunos em regime de internato promovem uma rebelião.
Um filme libertário
Com os créditos iniciais de Zero de Conduta, escutamos o som dos gritos e da algazarra de crianças. Logo depois, começa uma cantoria. Estaria aí a idéia central do filme libertário de Jean Vigo? Do caos virá uma nova organização social, mais alegre e harmônica?
O filme começa com um garoto que viaja no vagão de um trem. Ele retorna às aulas após o período de férias. No banco a sua frente, um homem dorme. O garoto está entediado. O seu humor muda com a chegada de um colega de escola. Juntos, eles brincam, tocam um instrumento, fumam charuto, apesar da placa que informa que o vagão é reservado para não fumantes. As regras estão postas para serem desobedecidas. A movimentação dos dois jovens não é suficiente para acordar o passageiro, o que leva um deles a afirmar: “Ele está morto!”. Esta é a primeira fala do filme. Uma frase significativa. Uma criança declara a morte de um adulto, mesmo que esse adulto, saberemos depois, seja o novo professor da escola. O mais liberal de todos e simpático à rebeldia dos jovens, mas ao estar submetido às regras da instituição, não escapará da subversão dos alunos.
Até esse momento, a encenação dos atores é basicamente gestual e pontuada por um acompanhamento musical, bem nos moldes do cinema mudo. Vale lembrar que Zero de Conduta é um filme de 1933, portanto, foi realizado apenas seis anos após o lançamento de O Cantor de Jazz (1927), considerado o primeiro filme falado da história do cinema. O cinema mudo é a base da formação cinematográfica de Vigo. E ele não esconde isso. Em Zero de Conduta, o cineasta faz uma referência a Carlitos, criação de Chaplin e personagem icônico dessa fase do cinema.
A maior parte dos acontecimentos em Zero de Conduta se passa dentro da escola, onde os meninos estudam e vivem. De um lado, há o movimento anárquico e livre das crianças. De outro, o controle paralisante dos adultos. A punição, o zero de conduta, o castigo, são as armas dos que detém o poder na escola: os professores, a coordenação, a direção. Aos alunos, cabem o inconformismo e a rebelião contra um sistema escolar baseado na repressão e na disciplina do corpo. Apesar do forte viés ideológico, o filme não é um panfleto. Muito pelo contrário, as cenas e situações vividas pelos personagens possuem humor e beleza. A construção fílmica transita entre o realismo mágico e o surrealismo, estéticas que marcam o trabalho de Vigo.
Na véspera da rebelião, com a excitação do que está por vir, os garotos fazem no dormitório uma guerra de travesseiros. Os meninos, inicialmente dispersos pelo quarto, se juntam numa espécie de cortejo, o que confere um tom quase épico àquele acontecimento. Essa é uma das mais belas seqüências do filme. A guerra é declarada no Dia da Comemoração. Data pomposa e que conta com a presença de autoridades. Como armas, os meninos usam tudo o que está à disposição, garrafas, sapatos e livros velhos. Do alto dos telhados da escola, eles atacam e fazem recuar os opressores. A vitória triunfal é comemorado ao som da mesma cantoria que escutamos na abertura do filme.
Zero de Conduta é um filme libertário feito por um artista de espírito livre. A obra tem origem nas próprias vivências do diretor francês. Vigo é filho do anarquista Miguel Almareyda, morto misteriosamente na prisão em 1917, quando o cineasta tinha apenas 12 anos de idade. A trajetória e militância política do pai exerceram grande influencia sobre Vigo. Zero de Conduta foi censurado pelo governo da França até 1946.
O cinema de Vigo
Jean Vigo realizou ao todo quatro filmes antes de morrer de tuberculose em 1934, com apenas 29 anos de idade. Apesar dos poucos filmes realizados, ele é considerado um dos grandes nomes do cinema francês. O primeiro deles, À propósito de Nice (À propos de Nice, 1930), curta-metragem documental de 23 minutos, é um retrato particular da movimentada cidade costeira. Na construção visual e rítmica do curta, há um olhar tanto poético quanto irônico sobre aquela realidade. É por meio de uma montagem astuta que o diretor expõe um discurso crítico, que vê além do glamour e festividade da cidade. Outra característica do diretor é a inclusão de cenas e situações que conferem um ar surrealista à obra. Por tais características, Jean Vigo tem sido comumente associado à cineastas de seu tempo, como Dziga Vertov e Luis Buñuel. Em 1931, Vigo realiza o seu segundo curta, Taris ou a natação (La natation par Jean Taris, Champion de France). Um tributo ao campeão de natação Jean Taris, e que surpreende pelo modo experimental e particular com que o cineasta constrói e manipula as imagens. Mas o reconhecimento vem através de suas duas últimas obras: o média-metragem Zero de Conduta (Zero de Conduite, 1933) e O Atalante (L’Atalente, 1934), único longa do diretor, realizado no ano de sua morte, e considerado por muitos como a sua obra mais importante.
Uma relação inusitada com o Brasil
Jean Vigo nunca veio ao Brasil, mas é pelas mãos de um brasileiro apaixonado por cinema que o seu trabalho ganha visibilidade. Paulo Emílio Salles Gomes, um dos mais importantes intelectuais e críticos de cinema que o Brasil já teve, além de professor universitário e fundador da cinemateca brasileira, dedicou-se sobremaneira a pesquisar a vida e a obra do cineasta francês, traçando uma relação indubitável entre elas. Em 1957, Paulo Emílio publica na França sua monografia sobre Jean Vigo, que foi reconhecido como o melhor livro sobre cinema daquele ano, através do Prix Armand Tallier. Sobre esse livro, escreve Fraçois Truffaout, no Cahier du Cinema, em 1954: “Passou por minhas mãos o manuscrito do mais belo livro de cinema que já li. Trata-se de um livro monumental sobre Jean Vigo, sua vida, sua obra.”
Por Marília Hughes